Cenas do Cotidiano IV – Um Oásis na Selva de Pedra 

​Da série #CenasDoCotidiano:
Um Oásis na Selva de Pedra
O dia estava sendo cansativo, carregar o violoncelo desde cedo, pegar motoristas mal humorados que a deixaram três quadras adiante do seu ponto, retornar todo o trecho a pé, terminar o almoço correndo, “voar” para um ensaio deveras frustrante, por não ter fluído como desejava eram motivos suficientes para deixá-la a soltar fogo pelas ventas! Mas curiosamente seu humor ainda estava em ordem. 
Após o ensaio ainda enfrentaria mais quatro horas de aula, das 18h às 22h em um local relativamente distante do seu itinerário habitual. Já estava em cima da hora, mas ainda dava tempo de passar naquela já famosa carrocinha, e já não sabia mais se ia pela comida ou pelo vendedor de olhar penetrante. De qualquer modo, seria interessante levar duas caixinhas dos quitutes sírios para dividir com o professor e os colegas, pois a aula seria longa afinal.
Cansada e esbaforida, pra variar, ela tentou examinar os conteúdos das caixinhas expostas, e se esqueceu que estava com a “cabeça mais alta, e atrapalhou-se com a voluta do cello no toldo da barraca.
-Alehkum el salam! – Saudou-lhe Ali em sua lingua materna.
Atordoada pelo cansaço e pelo constrangimento de ter-se atrapalhando, ela olhou-o sem entender coisa alguma.
-Oi! Como você está? – Disse, agora em bom português, o charmoso invasor. 
-Cansada… – Respondeu ainda esbaforida pela pressa de conseguir chegar a tempo na aula.
-Cansada? – Sorriu-lhe gentilmente, enquanto apresentava os sabores dos salgados como de costume. 
-Hoje só levarei as caixinhas, quero duas por favor. Esta é de que?
-Qual? – Aproxima-se para ver melhor a qual das caixas a moça se referia. – Ah, essa? Quibe de carne assada. 
-Hoje eu vou sair mais cedo. – Continuou Ali – Vou mais cedo para casa.
-Até que horas você costuma ficar?
-Gosto de ficar aqui até umas 20h, mas hoje vou mais cedo. (O sotaque ensaiou aparecer enquanto dizia isso) Muita gente me conhece aqui.
Ela esboça um sorriso amarelado:

-Ahn…
-Sexta não estarei aqui, vou viajar para… – falou tão baixinho que ela mal conseguiu ouvir o final da frase…
-Viajar? Pra casa?! – Retrucou ela sem entender.
-Não! –  Riu-se o vendedor da distração da moça. – Vou a SP por causa de um documento, mas é coisa de um dia, logo estarei de volta.
Ela abriu um sorriso e disse apenas:

-Que bom! 
A fantasia:

-Ainda bem que não vai dar tempo de sentir saudades 
A razão indignada:

-De onde você tirou essa ideia?!
Ali volta com o troco:

-Aqui está. 
E com o olhar ainda mais perscrutinador, cujo castanho agora revelava alguns tons esverdeados na luminosidade do entardecer de outono, despediu-se:

-Deus te abençoe.
Ela sorriu sem jeito, agradeceu e desapareceu nas escadas do metrô. 

Já no ônibus, o pensamento divagava, remoendo a cena enquanto observava o movimento sincronizado do VLT, tendo ao findo fundo o Pão de Açúcar iluminado pelo pôr do sol. Dialogava consigo:
-Você sabe que todo o encanto vai se quebrar no dia em que decidir conhecer a pessoa por trás desse personagem que você construiu, não sabe?…
-Sim… eu sei… Sei bem que toda essa euforia de coisa nova se deve tão somente ao torpor de inspiração fresca e que, cedo ou tarde, essa história terá um fim.
-Mas… e se não tiver? E se o fim for uma continuação? Estará disposta a assumir os riscos e enfrentar as consequências? Conseguiria lidar com as diferenças? 
Ao ponderar essas indagações, sente um calafrio gelar-lhe a espinha por uma hipótese jamais cogitada antes e terrivelmente ameaçadora às suas convicções. 
-Só Deus sabe…

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